O GARIMPO ILEGAL NUMA DAS MAIORES RESERVAS DE DIAMANTES DO PLANETA

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“A nossa terra é nosso espírito. Um índio sem sua terra é um índio sem alma.”

Fonte: Folha de São Paulo – 27/09/15 – texto e fotos: Fellipe Abreu – Luiz Felipe Silva

Terras indígenas entre os Estados de Rondônia e Mato Grosso possuem o que, estima-se, possa ser a maior jazida de diamantes do mundo. Os indígenas cintas-largas que ali vivem passaram a colaborar com garimpeiros e atravessadores na exploração; a área agora sofre desmatamento e tem até pista de pouso.

“A nossa terra é nosso espírito. Um índio sem sua terra é um índio sem alma.” Assim uma das lideranças do povo cinta-larga encerrou seu discurso em um encontro, realizado em maio, para discutir novas políticas indígenas. Inseparáveis na sua crença, a terra e a alma dos cintas-largas padecem juntas: o genocídio cultural e a violência contra membros da etnia são resultado da violação do chão que consideram sagrado. Debaixo das Terras Indígenas Roosevelt, Serra Morena, Parque Aripuanã e Aripuanã, entre Rondônia e Mato Grosso, onde habitam, esconde-se aquela que pode ser a maior jazida de diamantes do planeta.

O brilho das pedras começou a atrair o garimpo ilegal à região do igarapé Lajes entre 1999 e 2000. O território indígena demarcado (que, em tese, não poderia ser objeto de atividade mineradora, exceto garimpo artesanal promovido pelos próprios índios) é cortado hoje por uma clareira de aproximadamente 10 km de extensão por até 2 km de largura –além de um apêndice, também de 2 km, na chamada Grota do Sossego.

Garimpeiros e indigenistas estimam área ainda maior: seriam mais de 1.000 hectares dedicados à exploração mineral.

O pico da corrida ao diamante na Roosevelt ocorreu em 2004, quando havia mais de 5.000 garimpeiros na região. Foi interrompido com um conflito, após uma sequência de ameaças mútuas entre garimpeiros e indígenas, que resultou na morte de 29 dos extratores de minerais. Desde então, o garimpo no local já foi fechado e reaberto diversas vezes.

Caminhonete abandonada na estrada para o garimpo Lajes

“O quadro atual é mais grave do que era em abril de 2004. Em março deste ano havia pelo menos 500 garimpeiros, a maioria armada e afrontando os índios, dizendo que não iria sair da terra indígena”, afirma Reginaldo Trindade, procurador da República incumbido de defender a etnia.

A situação se repete: a reportagem esteve dentro do garimpo enquanto as atividades estavam completamente suspensas, em maio, por ordem dos índios. Ainda havia equipamentos abandonados e marcas de pneus recentes. Em julho, a área foi retomada pelos garimpeiros, que, armados, voltaram a extrair os diamantes.

DIAMANTES

Por ser terra indígena, a Reserva Roosevelt não pode ser estudada nem lavrada até a aprovação de uma lei com regulamentação específica. Ou seja, o conhecimento que se tem hoje resume-se a estimativas, e todas elas –segundo especialistas e empresas de mineração– estão abaixo do potencial real.

Mesmo conservadoras, as previsões sobre a reserva são superlativas: a Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais (CPRM), ligada ao Ministério de Minas e Energia, calcula que, apenas no garimpo Lajes, seja possível extrair 1 milhão de quilates de diamante por ano –uma receita que ultrapassaria US$ 200 milhões (cerca de R$ 800 milhões). Mais que isso: semelhantes ao raro kimberlito (tipo de rocha vulcânica onde se formam os diamantes) do Lajes, de acordo com relatório de uma empresa mineradora, existiriam em pelo menos mais 14 áreas. Não seria exagero dizer que há anuais US$ 3 bilhões (cerca de R$ 12 bilhões) debaixo da terra.

Confirmados esses números, a Roosevelt seria a maior jazida do planeta, com quase 50% de vantagem sobre a segunda, a russa Jubilee, que produz 10,4 milhões de quilates ao ano. Em 2012, a Rússia anunciou que a jazida Popigai Astrobleme, cratera de quase 100 km de diâmetro resultante do impacto de um asteroide, teria diamantes para abastecer o mercado global por 3.000 anos, mas ainda não há provas dessa capacidade.

Atualmente, o Brasil é inexpressivo no comércio internacional de diamantes: em 2013, o país produziu aproximadamente 49,2 mil quilates, o que corresponde a 0,04% do total da produção mundial (130,5 milhões de quilates). Destacam-se hoje Mato Grosso (88% do total) e Minas Gerais (11%), não por acaso as principais rotas de lavagem do diamante ilegal.

As pedras oriundas da Roosevelt são muito valorizadas por seu formato, tamanho, pureza e cor. “Podem ser usadas principalmente para joias de alto valor, são diferentes e facilmente identificáveis”, diz o chefe do departamento de recursos minerais do CPRM, Francisco Valdir da Silveira.

Para atingir uma produção proporcional ao potencial da Roosevelt, seria necessária a exploração mineral industrial de alta tecnologia, com máquinas modernas e mão de obra qualificada. Bem diferente da garimpagem semiartesanal que lá se pratica, com perda de até 40% das pedras no processo. Sem nenhuma fiscalização, utilizam-se equipamentos improvisados com baixa capacidade produtiva.

As retroescavadeiras abrem fendas de até 20 metros –ao passo que, nas grandes minas do mundo, as escavações chegam a até 600 metros. Ainda assim, estima-se que que a venda anual de pedras extraídas do território indígena chegue a R$ 100 milhões.

GARIMPO

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Indígenas nos mostram máquina que recebe a terra do solo e faz primeira etapa de peneiração das pedras

Do alto, vê-se uma grande clareira na floresta amazônica, com a terra avermelhada em contraste com o verde. Já no chão, a entrada do garimpo parece uma ilha de um ecossistema seco e sem vida, margeado por um rio de um lado e um lamaçal do outro. É preciso tomar cuidado com onde se pisa –a terra rachada pode esconder buracos de areia movediça.

Poucos quilômetros à frente, o coração da garimpagem: enormes crateras enfileiram-se, entrecortadas por montanhas de terra, num horizonte sem fim. Perto dos buracos erguem-se barracões precários de madeira cobertos por lonas. É onde os garimpeiros fazem suas refeições, preparadas por suas mulheres ou por cozinheiras.

“Tem muita droga e prostituição, claro, mas vai muita família para o garimpo. A família toda, mulher e filhos, fica meses lá, e todo mundo se respeita”, conta um garimpeiro que não quer se identificar. Ele reclama de que a vida no garimpo é muito dura.

Chegar até lá já é um sofrimento: da aldeia Roosevelt, a maior de toda reserva, percorre-se uma estrada de 35 km transitáveis apenas em trator, veículos potentes ou motocicletas. De moto, a viagem passa por áreas alagadas, e o veículo precisa ser carregado no braço em alguns momentos. Não raro o desgaste dos freios é tal que eles acabam antes do fim do percurso de aproximadamente quatro horas.

No garimpo, o trabalho é pesado, e o retorno, incerto. “Encontramos uma pedra grande, bonita, de mais de 11 quilates. Entregamos para o atravessador vender e nunca vimos a cor do dinheiro. Disseram que ele vendeu por R$ 180 mil”, reclama um garimpeiro que, após o episódio, desistiu do trabalho.

O sistema de funcionamento do garimpo é uma espécie de engrenagem complexa, que gera uma “guerra fria” entre garimpeiros, índios e intermediários: todos tentam passar a perna nos demais.

Para começar, um investidor dispõe-se a comprar equipamentos, fazer contatos com compradores estrangeiros e subornar a fiscalização. Ele utiliza um intermediário local para negociar cada etapa desse processo –mediante, é claro, uma comissão.

O intermediário contata uma das principais lideranças cinta-larga (cada uma pode “operar” um trecho do garimpo) e oferece as máquinas em troca de um percentual da venda das pedras, de 20% a 30%. O garimpeiro entra como trabalhador braçal, sem renda fixa. É “contratado” pelo líder indígena e deve se reportar a ele caso encontre pedras. Do total do valor do diamante, o grupo de garimpeiros recebe 7%, parcela geralmente dividida igualmente entre todos.

Acontece que o intermediário avalia a pedra entre 30% e 40% abaixo do valor real da venda, dizem índios e compradores. Muitas vezes o índio recebe sua parte e não repassa aos garimpeiros, que, por sua vez, tentam vazar o diamante do garimpo direto para o comprador, driblando índios e atravessadores. Pequenas, as pedras cabem no bolso ou podem ser engolidas; o problema é que, se descoberto, o garimpeiro corre o risco de pagar com sua vida.

MASSACRE

Os primeiros contatos dos cintas-largas com o homem branco foram trágicos: sofreram um monstruoso genocídio, conhecido como Massacre do Paralelo Onze, em 1963, que matou 3.500 indígenas e precipitou a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), sucedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O que era uma etnia com cerca de 5.000 indivíduos hoje tem, segundo o Censo, apenas 1.758 pessoas.

A relação com os brancos seguiu estável até o início da garimpagem. Daí em diante iniciou-se um processo sistemático de aculturação. Primeiro, a contragosto, os índios permitiram o garimpo com ressalvas, mas a fartura de dinheiro e as perspectivas de consumo corromperam hábitos e geraram dívidas muitas vezes impagáveis.

Levantamento realizado pela indigenista Maria Inês Hargreaves indica que, em média, para cada índio cinta-larga, há entre três e quatro processos judiciais, a maior parte de cobrança de dívidas. Independentemente das trapalhadas financeiras, parte do endividamento é fruto de golpes: estelionatários que abusam do despreparo dos índios para fazê-los assinar documentos em branco, aceitar juros abusivos e aprovar cartas de crédito sem detalhamento das condições de pagamento.

Para saldar os débitos, muitas vezes cobrados a arma de fogo, permitem a garimpagem em sua terra e a ela se aliam. “Eles sabem que a situação criminosa e marginal em que se encontram conduzirá (já está conduzindo, na verdade) toda a comunidade à extinção. O povo cinta-larga está à beira do genocídio, se não físico, no mínimo étnico e cultural”, sentencia o procurador Reginaldo Trindade.

O coordenador regional da Funai em Cacoal, Bruno Lima e Silva, corrobora: “A comunidade, no geral, é contra o garimpo, e são apenas poucas lideranças que lucram com isso e geram divisões políticas na etnia”, afirma.

“Pela vontade da gente, não teria mais garimpo faz tempo, mas o governo não ajuda”, diz uma das mais importantes lideranças, que pediu para não ser identificada. A queixa tem endereço certo e motivação definida: a falta de apoio técnico e financeiro da Funai.

Ainda que elogiem a recente ação regional da fundação, há atritos sobre repasse de verbas e um histórico de problemas de relacionamento dos cintas-largas com a gestão do ex-presidente Márcio Meira (2007-12) –alvo, com mais três dirigentes, de uma ação civil de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público.

Em 2014, a Funai destinou apenas R$ 104.823,26 à etnia, um valor médio de R$ 58 por índio.

“A política indigenista vem sofrendo ataques constantes, que podem ser notados nas PECs e PLs e no enfraquecimento institucional da Funai, seja por limitação da atuação do órgão, seja pelos recursos irrisórios destinados à fundação”, analisa Bruno Lima e Silva.

Por outro lado, o grupo operacional capitaneado pelo Ministério da Justiça e pela Polícia Federal recebia, entre 2006 e 2009, cerca de R$ 7 milhões por ano para coibir o garimpo. Não só não coibiu como piorou a relação dos índios com o Estado. Além da questão financeira, os indígenas relatam maus-tratos –e o Ministério Público já denunciou abusos por parte da própria Polícia Federal.

Rarefeita, mas agressiva, a presença do Estado é evitada pelos cintas-largas na reserva, o que abre espaço para outras formas de poder: lobistas, intermediários, operadores do garimpo e líderes religiosos entram na terra indígena e agem como tutores da comunidade –conseguem remédios, vagas em hospitais, prometem riquezas e encaminhamento espiritual. A etnia hoje é quase toda seguidora da Assembleia de Deus.

FLUXO

Há bases da Polícia Federal em todas as portarias oficiais das terras indígenas, mas ainda assim é impossível controlar o fluxo de pessoas e equipamentos até o garimpo. Abrem-se estradas clandestinas que vazam a reserva por meio de fazendas fronteiriças. E há uma pista de pouso dentro da reserva, além de diversos pequenos aeroportos em fazendas.

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Casa de madeira na aldeia Roosevelt, a mais populosa da reserva

Os diamantes extraídos da Roosevelt saem, sobretudo, por três caminhos. Um deles é justamente o transporte aéreo. Retiradas da terra, as pedras são fotografadas e as fotos enviadas pela internet para os compradores intermediários, geralmente europeus e norte-americanos. Por mensagem, negociam preços e local e data da entrega.

O comprador chega à América do Sul via Equador, Peru, Colômbia ou Bolívia. Num desses destinos, aluga um monomotor e cruza a fronteira pelo ar, até aterrissar numa pista ilegal para entregar o dinheiro e pegar o diamante, sem nem pisar em solo brasileiro.

Outra forma de desovar os diamantes é pela fronteira terrestre, rumo à Venezuela e à Guiana. A Venezuela era um dos poucos países produtores de diamante que não emitia o certificado Kimberley (espécie de certidão da pedra que, em tese, comprova sua origem) até abril deste ano, quando assinou o acordo internacional. Antes, todo seu mercado de diamantes era ilegal, e toda pedra brasileira que lá entrava era incorporada pelo comércio local. Para a Guiana, o fluxo de contrabando é menor. A vantagem é que se pode conseguir o selo Kimberley –pedras que entrem num zoneamento legal da certificação são cadastradas como se tivessem sido extraídas de lá.

O terceiro modo de esquentar os diamantes é interno. A operação é semelhante à que se realiza na Guiana, com o registro feito em outros Estados, no caso Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás. Os diamantes são levados de forma ilegal até minas regularizadas e, chegando lá, são “oficializados”.

Com a chancela Kimberley, podem ser exportados diretamente ou vão para a cidade de Juína (MT), onde são vendidos em uma legalizada “bolsa de valores de diamantes”, na praça principal.

Tudo isso dificilmente se faria sem um guarda-chuva de interesses poderosos. “Sempre acreditamos no envolvimento de pessoas poderosas a movimentar o garimpo”, diz Reginaldo. “São muitos os relatos a respeito do envolvimento de servidores de diferentes órgãos, políticos, empresários e até multinacionais na exploração; só isso pode justificar que uma situação tão grave seja tratada de forma tão amadora”, conclui.

O dinheiro que entra nas contas das lideranças indígenas, claro, também não é legal. É usado geralmente para melhorias na comunidade, com alguns privilégios para os líderes: compram-se, por exemplo, caminhonetes para o transporte de todos, mas a prioridade de uso é dos caciques; ou instalam-se antena parabólica e internet wi-fi, mas antes na casa do cacique. Por outro lado, se a liderança não atender a um mínimo de expectativas em sua aldeia, será contestada internamente.

Hoje, os líderes mais influentes são aqueles com mais respaldo popular, caso de Marcelo Cinta-Larga, cacique da Aldeia Roosevelt, e do já idoso João Bravo, chefe da Aldeia Tenente Marques, onde pouco se fala português.

João Bravo é liderança histórica dos cintas-largas e tem status de prefeito vitalício, bancado pelo dinheiro do garimpo. Ficou rico, mas levou contrapartidas à comunidade: construiu estradas e iluminação, providenciou médicos e remédios para a aldeia, comprou carros e gado e até ergueu uma pequena hidrelétrica na terra indígena.

Já seu filho, Raimundinho Cinta-Larga, não conta com o mesmo prestígio. Um relatório do Ministério Público de Rondônia aponta que em 2005 ele já era dono de uma casa avaliada em R$ 400 mil em Cacoal. Em 2014 foi citado nas investigações da Lava Jato como destinatário de oito remessas de dinheiro (em um total de R$ 21.450,00) oriundas do doleiro Carlos Habib Chater, suspeito de participar da extração e venda de diamantes no exterior.

A defesa de Raimundinho diz que ele e a cooperativa que comanda, Coopecilar, nunca extraíram diamantes da terra indígena.

LEI

Diz o parágrafo 3 do artigo 231 da Constituição Federal que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

Em outras palavras: é preciso que o Congresso crie e aprove uma lei que permita e regulamente a extração de recursos naturais em terras indígenas. Como essa lei não existe, hoje qualquer tipo de mineração na Roosevelt é ilegal.

“Queremos que o garimpo seja legalizado”, diz com veemência Marcelo Cinta-Larga. A regulamentação é a solução apontada por nove entre dez fontes ouvidas pela reportagem, como funcionários do Ministério Público e Polícia Federal, índios e indigenistas e até garimpeiros, que dizem preferir trabalhar legalmente.

Já foram propostos três projetos de lei para tentar regular a atividade, os PL 7.099/06, 5.265/09 e, principalmente, o 1.610/96, proposto pelo hoje senador Romero Jucá (PMDB-RR) há quase 20 anos.

A proposta de Jucá foi tida como inaceitável por defensores dos direitos indígenas, sobretudo porque diminuía o peso da consulta às comunidades e estipulava royalties de só 2% da receita bruta das riquezas naturais, por lei, pertencentes à União. O projeto valeria para todo tipo de mineração, fosse de diamante, ouro ou qualquer outro minério ou pedra preciosa.

Em 2010, o deputado Eduardo Valente (PT-RO) apresentou texto substitutivo ao PL 1.610/96 que incorporou 40 emendas, mas rejeitou outras 62, além de considerar quatro inconstitucionais. O texto, que prevê royalties pouco maiores, de 3%, também enfrenta resistência.

Em paralelo, tramita no Congresso a PEC 215, que transfere da União para o próprio Congresso o direito de demarcação das terras indígenas e permite revisão dos territórios já demarcados, sob novos critérios. Tais medidas ferem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, acordo assinado pelo Brasil a partir de 2003, que incorpora à legislação interna dispositivos de proteção a povos indígenas e tribais.

“A lei ainda não veio. O modelo de mineração depende do texto aprovado; se será por licitação, se a negociação será direta com os índios, ou qualquer outro modelo”, esclarece o advogado e professor de direito financeiro da Universidade de São Paulo Fernando Scaff.

Scaff explica que, regra geral, o direito de explorar a riqueza é do primeiro a descobri-la, mas que em terra indígena o procedimento dependerá da lei. A consulta aos povos indígenas deve ocorrer na operação de cada garimpo, não na aprovação da proposta.

Isso significa que, para operar em terra demarcada, seria preciso se acertar com os índios. Há quem já esteja fazendo isso.

Existem duas cooperativas dedicadas à exploração mineral entre os cintas-largas, a já citada Coopecilar, durante anos liderada por João Bravo e Raimundinho, e a Coesci (Cooperativa Extrativista e Sustentável dos Cinta-Larga), capitaneada por Marcelo e Oita Mina Cinta-Larga, mas que conta com apoio de quase todas as lideranças. Para qualquer interessado em operar o garimpo legalizado, essas são as duas portas de entrada –e ambas já têm seus representantes.

Quem atende a Coopecilar há alguns anos é o advogado Raul Canal, cujo escritório fica em Brasília. Para a Coesci, o também advogado sediado em Brasília Luís Felipe Belmonte e o empresário Samir Santos Entorno apresentaram uma proposta de regulamentação do garimpo em março deste ano.

Em ambos os casos, os discursos são semelhantes: fazem trabalho de consultoria jurídica em Brasília para proteger os direitos indígenas e representá-los em processos judiciais em favor da legalização.

As promessas também: índios acreditam que, após a legalização, a etnia cinta-larga será uma das mais ricas do mundo –a reportagem viu Samir Entorno mostrando para os índios fotos de seu trabalho com aldeias milionárias no Novo México, nos Estados Unidos.

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Vista panorâmica de trecho do garimpo Lajes

As frentes de atuação, contudo, são diferentes. Canal diz que se empenha em aprovar ainda neste ano o processo judicial que abstém os cintas-largas de se submeterem à aprovação do Congresso para “a exploração exclusiva por eles [índios] de todas as riquezas do subsolo e potenciais energéticos”.

“Não apoiamos nenhuma das iniciativas legislativas, pois nenhum dos projetos que tramitam no Congresso atende aos interesses dos indígenas. Todos são de interesse das grandes mineradoras.”

Já Belmonte dedica-se a obter para o cintas-largas a permissão para a legalização do garimpo, faiscação e cata –procedimentos de exploração do solo na superfície.

“A proposta é dar meios legais para eles trabalharem. O dinheiro seria todo da comunidade por vias legais: eles fazem o garimpo, negociam o diamante, e a cooperativa administra. O Estatuto do Índio permite isso”, afirma. “O problema é abrir para o garimpeiro entrar e explorar atividades ilegais”, diz.

Os dois advogados afirmam não manter relação com o garimpo ilegal e mineradoras.

Uma fonte do governo federal diz que a legalização do garimpo na Roosevelt é parte de um lobby internacional que vem da Antuérpia, na Bélgica (país responsável pela negociação de 80% dos diamantes brutos e de 50% dos diamantes lapidados do mundo), cujos investidores querem direcionar seu dinheiro para países com democracia e economia estáveis.

Em conflito com o Estado, sem verbas e com a cultura deteriorada, os cintas-largas seguem dependentes do garimpo, seja clandestino como hoje, seja legalizado por homens de terno em Brasília.

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