O ano de 2017 começou com o novo capítulo de uma história velha. A morte de 60 detentos em presídios do Amazonas chamou atenção do país e chocou o mundo. Mais uma vez, a guerra de facções criminosas dentro de presídios brasileiros expôs a fragilidade do sistema penitenciário do país. Especialistas e profissionais que vivem de perto a rotina dos presídios mostram que o sistema é falho e contribui para episódios como de Manaus.
As más condições a que presos são submetidos facilitam o crescimento de facções criminosas dentro dos presídios, nos quais o Estado tem cada vez menos influência. “O que acontece é que criamos um modelo para impedir a fuga de certos indivíduos, mas você os deixa se virarem lá dentro. Então, isso facilita a vida de organizações criminosas que tomam conta da cadeia”, afirmou o doutor em ciência política e ex-secretário de Segurança Pública Guaracy Mingardi.
Segundo ele, o sistema penitenciário sequer pode ser chamado de “sistema”. É uma “coisa dispersa”, onde cada lugar tem uma regra diferente. De acordo com Mingardi, o Brasil precisa repensar a situação dos seus presos e o motivo pelo qual estão encarcerados.
“O Brasil é um dos países com o maior número de presos sem nenhum resultado. Existem pessoas presas por coisas que nem precisaria, e não estou falando de homicídio ou assalto à mão armada. Precisamos pensar mais em outras formas que não sejam só aumentar o tamanho das penas”.
Presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Carlos Lamachia disse acreditar que as cadeias são locais onde pequenos infratores se tornam verdadeiros bandidos. “Acho que o Brasil prende mal e, quando prende, em determinadas circunstâncias, ainda alimenta o crime. Encarceramos alguém por um acidente menor. Aí, colocamos essa pessoa dentro de um presídio, no qual ele vai conviver com presos de altíssima periculosidade”
Secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes afirmou concordar em medidas que reduzam o número de presos. As audiências de custódia, que aceleram o julgamento para detidos em flagrante e preveem o uso de penas alternativas à prisão, são um exemplo. Entretanto, ele defende a ação da polícia. E explica que a polícia “não escolhe” quem deve prender.
“Sou totalmente favorável às audiências de custódia, a medidas que procuram encarcerar menos, mas que não dependem da polícia. Dizem que a gente prende muito e prende mal. Na verdade, não temos opção. Cometeu o crime, tem de prender. […] Quem escolhe se permanece [preso] ou não é o Judiciário”. Para ele, a forma do Estado retomar o controle dos presídios é investir na disciplina dos presos.
“Eles têm de saber que é o Estado que controla. É preciso retomar, com procedimentos que não são bem desejados. A tendência da gente é querer paz. Então, vamos abrindo mão, dando regalias e, quando vemos, o controle foi perdido”. Mingardi lembrou que as estruturas do Estado são voltadas a prender mais, e não menos.
“Se fizer uma reforma, aumentar a eficiência da polícia, do Judiciário e do Ministério público, vai mais gente para a cadeia. Tem de pensar como vai fazer isso, de forma que a cadeia não fique ainda mais entupida, porque ninguém quer gastar dinheiro em cadeia. Todo mundo acaba falando ‘eu prefiro construir escola’. É bobagem, porque a maioria não constrói escola nem cadeia.”
Juiz titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas, Luis Carlos Valois disse que o Estado tem de passar a cumprir a lei sobre as condições de um presídio. De acordo com o juiz, a prisão que existe é ilegal e longe do ideal.
“A lei fala em educação, saúde e assistência de tudo que é tipo: religiosa, esportiva, cela com arejamento, com espaço. Não pode ter superlotação. A lei diz tudo isso. O sistema penitenciário brasileiro, se cumprisse a lei, era um dos melhores do mundo. A lei não é cumprida”.
Superlotação
O magistrado descreve o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), onde 56 presos morreram no início de janeiro. Segundo ele, em uma cela feita para oito pessoas abriga 30, com gente dormindo sob camas de cimento. “Isso tudo no calor de Manaus. Já tem estudos de criminologia que informam que o calor é um índice de [aumento de] criminalidade. Imagine em Manaus.”
A superlotação é um dos problemas que afligem os presídios no Brasil. Dados de 2014 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostram o crescimento gradual da população carcerária no Brasil. Em 2004, o país tinha 336 mil presos.
Dez anos depois, esse número quase dobrou, com 622 mil, sendo 584,7 mil em prisões estaduais, 37,4 mil em carceragens de delegacias e 397 nas quatro prisões federais em funcionamento no país. A quantidade de vagas, porém, não acompanha o crescimento. Em 2014, o número de vagas era 371,8 mil.
Conforme especialistas, o número de presos provisórios contribui para uma conta que não fecha quando se fala em população carcerária e vagas no sistema prisional. Presos provisórios são aqueles que ainda não foram julgados. No Brasil, 40,13% dos presos sequer foram julgados.
No Amazonas, por exemplo, 62,64% dos presos são provisórios. O número de presos ainda sem julgamento (5,5 mil) é suficiente para superar o número de vagas no estado (3,4 mil). Na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Rondônia e Sergipe o cenário é o mesmo: não existe cadeia suficiente nem para os presos provisórios. Presídios superlotados do Amazonas e de Rondônia têm protagonizado as páginas de jornais desde o fim de 2016, com mortes e guerras entre facções criminosas.
Facções no controle
Atual secretário de Segurança Pública, Fontes já foi superintendente da Polícia Federal no estado. Para ele, chacinas entre presos não é nova. “Eles já se matam há muito tempo”, disse. Ele explica que o avanço do Primeiro Comando da Capital (PCC) no Rio de Janeiro, estado natal do Comando Vermelho, pode ser um dos motivos do aumento da violência nas penitenciárias.
“Antes de acontecer aqui, aconteceu em Roraima, Acre, Maranhão, Pernambuco. E sempre com essa conotação. Nós já sabíamos, tanto que separamos os PCC’s da FDN [Família do Norte, facção aliada ao Comando Vermelho e rival do PCC]”.
Fontes discorda, no entanto, que membros de que uma facção não devam ficar no mesmo presídio que membros de uma facção rival. “Dar um presídio para o PCC significa dizer que todo mundo que entrar lá vai virar PCC. E isso não é bom”.
Luis Carlos Valois ressaltou que “preso deve ser tratado como preso” e não como líder. Para o juiz, essa valorização do status de liderança de um preso lhe dá poder dentro da cadeia. “Não legitimo as facções. Quando chego na penitenciária, os presos se comportam como presos. Aliás, preso tem de ser tratado como preso e não como líder de alguma coisa. Esse é um grande equívoco do sistema penitenciário brasileiro, tratá-los como se fossem líderes”.
Para o presidente da OAB, o combate às facções passa pela separação de presos por tipo de crime cometido, algo que não é visto em muitos presídios do país.
“O Estado não pode mais sucumbir às facções criminosas. Termos a ideia da separação de presos, os de maior e menor potencial ofensivo. O Brasil tem de investir em mais vagas no sistema prisional. Investimento em sistema prisional brasileiro é investir em segurança pública. A sociedade precisa entender isso”.
Fonte: EBC