Existe um vasto acervo fotográfico dos primórdios da capital de Rondônia, Porto Velho, que hoje , 24.01.2017, está completando 102 anos de instalação de seu município.
O que é escasso, todavia , é a descrição pormenorizada, na forma escrita, de como era a vida cotidiana destas paragens até a segunda década do século XX.
Com base em visitas que fizeram a Porto Velho ou mesmo por terem morado aqui, alguns historiadores conseguiram legar para a posteridade uma ideia razoável do dia a dia da cidade por volta da década de 50 (ler Manoel Rodrigues Ferreira/ Nas Selva Amazônicas e A Ferrovia do Diabo; e Antonio Cantanhede/ Achegas para a História de Porto Velho).
Nesse contexto, surge como raridade um texto pouco conhecido dos não iniciados na História com H maiúsculo, escrito no final da década de 20 do século pretérito pelo autodidata Raimundo Morais, que apenas frequentou o curso primário mas deixou para a posteridade uma descrição insuperável de uma cidade que estava ainda no seu nascedouro.
Trata-se de Uma Cidade à Far-West, que integra a coletânea de Na Planície Amazônica, do mesmo autor. O livro foi editado no ano 2000 pela gráfica do Senado e faz parte da Coleção Brasil 500 anos. Este jornalista recebeu de presente uma edição , com dedicatória, das mãos do advogado Guilherme Erse Moreira Mendes, em 22 de agosto de 2001, na época em que o pai de Guilherme, o também advogado Rubens Moreira Mendes, era senador.
Mas voltemos ao autor desta obra primorosa. Sobre Raimundo Morais e seu livro, o também historiador Leandro Tocantins, do clássico Formação Histórica do Acre , escreveu: “Toda matéria de na Planície Amazônica é vívida e quente: são flagrantes de vida e de paisagem recolhidos durante anos a fio no convés dos gaiolas, subindo e descendo rios e paranás. Não apenas vistos, não apenas observados, mas experimentalmente vividos como personagem”.
Prático de embarcações que atracaram no porto da cidade de Porto Velho há mais de 90 anos, Raimundo Morais tinha uma visão aguda para as cenas do cotidiano, tudo aliado a uma escrita poética, mas objetiva , descritiva e detalhista.
Estão lá as prostitutas, os seringueiros “de saldo”, os comerciantes turcos “pedindo 100 para deixar por 50”; o seringalista abastado, a multiplicidade linguística (“o grego conversando com o japonês, o americano com o zíngaro, o boliviano com o argentino, o inglês com o búlgaro”) ; enfim, todos aqueles pioneiros que ajudaram a formar o que hoje, na segunda década do Século XXI, é Porto Velho.
O livro na Planicíe Amazônica foi lançado em 1926, em Manaus, mas Uma Cidade à Far-West retrata a Porto Velho de pelo menos dez anos antes, portanto, no final da década de 20.
Ainda nas palavras de Leandro Tocantins, “o livro se presta a avaliações da memória cultural: lá está a descrição de um Porto Velho do fim da década de 20, ‘cidade à far-west’, fundada há apenas dez anos, mas com um movimento, uma mistura humana, um aventureirismo, a estrada de ferro até Guajará Mirim, ‘com versões sensacionais , que fazem a história desse trecho trafegável ser escrita ao sabor da verdade e da mentira’, uma Belém do Pará límpida, radiosa, uma cidade de Manaus ainda provinciana mas progressista. Tudo vivo, flagrante, quente”.
Nesse dia em que Porto Velho completa 102 anos de instalação, compartilho, ao finalizar, o texto Uma Cidade à Far-West, de Raimundo Morais:
O cinema de vez em quando reproduz nos lances dramáticos da vida yankee, a hinterlândia da América do Norte; e revela, então, ao espírito do espectador brasileiro, os episódios e as aventuras do americano ao penetrar o sertão do seu país. Deslizam na tela o cow-boy, o pele-vermelha, o rebanho, a planície , a montanha, a estrada de ferro e a cidade. Logo no limpa-trilhos que rasga, deserto adentro, as linhas de penetração seguem as sementes de um progresso embrionário.
Os ermos infindos, malbalizados aqui e acolá por um morro solitário, colonizam-se atabalhoadamente, na vertigem célere duma raça que se expande. Quem pisa pela primeira vez Porto Velho tem a sensação de estar pisando uma dessas cidades cinematográficas, construídas, armadas e povoadas por todos os materiais e por todas as gentes no far-west da grande República do pavilhão estrelado. É a memória fiel que constata semelhante identidade. As casas de madeira, aqui, cobertas de zinco, de palha, de telhas de barro, teladas ao redor, como grandes gaiolas, ao lado de edifícios de pedra e cal, de choupanas; a agitação febril da população heterogênea, que formiga de sol a sol; e a fisionomia predominante e quase coletiva do peão, que parece ter chegado e já parece pronto a partir, além de outras características, denunciam a urbe das mágicas, alevantada ao toque das fadas tutelares.
Menores de onze anos, pois que a cidade há pouco mais de dez foi fundada, os seus cidadãos não excedem , na altura, a uma espada de cavalaria. Os contrastes fortes das organizações que nascem sobre os influxos da cultura no regaço agreste desta gleba moça, em plena floresta amazonense, chocam naturalmente a retina desavisada de quem os olha pela primeira vez. Assim, neste amontoado de habitações, à beira do linde fronteiriço dum estado, extremam paradoxalmente um dos menores municípios do Amazonas, que é Porto Velho, com o maior de Mato Grosso, que é Santo Antônio, o maior do Brasil , e, talvez, o maior do mundo. A estrada de ferro que dali parte , para salvar a região encachoeirada no Madeira , extensa de 366 quilômetros, no fragor do comboio que marcha apitando , badalando, rangendo, bufando, fumegando, crepitando, substituiu, com os seus trilhos de aço, no tráfego de produtos e na condução de passageiros, o veículo primitivo, que ia da montaria ao batelão, da ubá à igarité; o salão elegante do seu Clube Internacional , repleto de almofadinhas e melindrosas, cheio de senhoras e cavalheiros distintos, que se agitam coreograficamente ao som de one-step , do fox-trot, dos lanceiros, e onde se vê o inglês de Londres e a francesa de Paris, distinguiu o monótono batuque do aborígene , que, de tanga e de cocar, empunhando arco e flecha, exercitava num passo misto e esperto, entre religioso e profano, a dança ao ar livre, dançada no terreiro das malocas sob a luz branca da lua; a sua bomba dágua, que puxa e faz fluir nos canos, de casa em casa, de torneira em torneira, o abençoado liquido, num trabalho de nova samaritana do século XX, contrasta com a dinâmica ciclópica do rio, hidráulica de gigantes, a impelir , pela compressão e pela rampa, a água cheia de detritos, barrenta, suja, revolta lá dos cimos embuçados nas neves das cordilheiras , até as planuras azuis do Atlântico; a sua luz misteriosa e imponderável, vinda por um fio de aço da motriz para lâmpada das ruas e dos lares, por um simples contato elétrico, anula e distancia o processo aborígene que faz o lume sagrado da lareira pela fricção demorada e rudimentar do âmago das árvores; seus dois jornais, o Alto Madeira e a Gazeta, circulando entre uma população que confina por todos os quadrantes da rosa com as populações nômades dos índios , selvagens, analfabetos- dão ideia segura de que a civilização , em múltiplos detalhes, invade , conquista, domina a barbaria.
Quando o navio que traz o turista da jusante faz a última curva abaixo de Porto Velho aparece ex-abrupto a policrômica cidade na enseada. Uma impressão falsa assalta aí o viajante: é a de que está enxergando uma fábrica ou uma usina, tantos são os galpões de zinco entre o chiar das máquinas, o penacho fumarento das chaminés, o ranger ruidoso dos ferros.
E desembarcado, porém, essa impressão é outra, modificada para a realidade. Surge, então, uma cidade à moda do far-west americano, tais os aspectos imprevistos, ao arrepio das povoações amazonenses, que vão ferindo a retina alarmada do curioso, quer na construção desigual, quer nos hábitos desenvoltos, quer, ainda, na perspectiva do conjunto.
O Café Central, eixo da vida desta localidade, é um símbolo. A promiscuidade aí sintetiza a aglomeração étnica do município , na fala, nos trajes, nas raças. E essa aglomeração, que em grande escala se desdobra na cidade, é oriunda de todas as latitudes, de todas as longitudes, dos frios polares da Sibéria, dos areais tórridos da Arábia.
Das vinte às vinte e quatro horas, nesse estabelecimento, um músico peruano versado em Chopin, em tangos, em cateretês, embala, aos acordes de um piano, o pensamento da freguesia. As zabaneiras profissionais , desde a cearense à turca, desde a boliviana à amazonsense, desde a colombiana à rio –grandense, entram e saem saracoteando sob os olhares escaldadiços dos seringueiros de saldo, vindo dos altos rios, mal refeitos ainda de uma longa castidade obrigatória.
Por entre esta sociedade suspeita, nas mesmas salas, outra, mais firme, menos adventícia, de advogados, médicos, engenheiros, juízes, promotores, capitalistas, jornalistas, proprietários e até , Santo Deus! de secretários de Estado. O ex-ministro da instrução da Bolívia, Dr. Guilhermo Áñez, advogado e exilado político, toma ali o seu café de expatriado. Nas imediações deste local avulta o turco no mais pujante comércio, pletórico de quinquilharias, de molhados, de fazendas, pedindo cem para deixar por cinquenta , naquele falar grunhindo e pitoresco de quem troca o p pelo b. Se o Amazonas, na sua própria capital, é um ninho de forasteiros de outros estados, Porto Velho, na sua cidade, é um pandemônio de muitas nacionalidades, verdadeira torre de Babel, na qual o grego conversa com o japonês; o americano com o zíngaro, o boliviano com o argentino, o inglês com o búlgaro.
Conta o Dr. Joaquim Tanajura, atual superintendente dessa comuna, homem de fina inteligência, companheiro e médico da expedição Rondon da estepe canicular entre Cuiabá e a margem do Madeira, que, certa vez, ao redor da mesa de vinte talheres, ali, sentaram-se dezoito representantes de várias nacionalidades, tão multifário é, nessa nova Cosmópolis, o ádvena. A terra, que se estende plana de leste até o povoado, retalhada apenas pelo arranhol lacustre e flúvio, e que corria uniforme e serena rumo dos arrabaldes, logo se pertuba na cidade.
Os altos e baixos, em manchas acidentadas, marcam fatalmente o ponto derradeiro, para quem baixa do montante , e sacudidelas remotas, sucedidas talvez numa convulsão geognóstica no tempo em que os Andes, ao se elevarem em espinhaço do continente colombiano, transformara a fisionomia topográfica destas coordenadas de mar Mediterrâneo em planície, em vale, em árvore hidrográfica.
Sete quilômetros acima de Porto Velho , na direção afogueada do poente, o sinal deste fenômeno é mais vivo: o solo não registra apenas a perturbação sísmica, mas também a descida de uma avalancha pré-histórica de granito, rolada dos píncaros andinos e desfeita aqui em blocos irregulares, que vão do penhasco ciclópico ao eixo miúdo. É a Cachoeira de Santo Antônio, primeiro degrau, já no estado de Mato Grosso, da escada rochosa que vai ter, do fundo da planície equatorial, aos altiplanos da Bolívia.
A água aí ruge, saltando em catadupas, redemoinhando em aspirais, enfiando-se em estoques, retrocedendo em remansos, abrindo –se em funis, bombeando-se em rebojos, precipitando-se em lençóis, como se no seio da corrente andasse um turbilhão e energias desconexas, antagônicas, caóticas a se comprimirem , a se penetrarem, a se repelires na ânsia cega de vingar aquele declive.
No alto de uma colina da margem direita da cachoeira demora da estação a linha telegráfica, ligando o Amazonas ao Rio, via Mato Grosso. O panorama que daí se abre, na volta completa do horizonte, tem o colorido e o movimento de um quadro estranho, meio druídico e meio bíblico , pela floresta, pelos contornos, pelas tintas.
O cinéreo da abóbada celeste, o verde negro do povo arborícola, conjunto das linhas, o moreno da terra e barrento das águas, deram um tom escuro, apocalíptico à paisagem, tom de cousas que repontam e abrolham do silêncio e do mistério. As cortinas glaucas da meta, erguidas sobre a terra parda, ao lado da pedra parda, refletida na água parda e mal alumiadas por luz baça e opaca de dia chuvoso, impregnam o ambiente de um mar merencório, como se a terra, plástica e mole, estivesse ainda na fase inicial da sua formação. No espaço plúmbeo, a boiar na atmosfera grossa, voga qualquer cousa das páginas do Gênese.
Porto Velho, todavia, no alargar do seu âmbito, no formigar de sua gente, na competição de seu comércio, lá ao longe, no fim do estirão, é indiferente às dores deste nascer rude da terra. E, na volúpia dominadora e triunfante do apuizeiro, padrão amazonense das substituições silenciosas, vai matando, pelas radículas tentaculares de seus caminhos abertos, a vida bárbara e primitiva que o envolve. O piano do Café Central, tocado com a fúria wagneriana desse filho do Peru, anda derrubando, como a trombeta de Jericó, a taba indígena dos arredores: e a locomotiva da Madeira-Mamoré, silvando estridentemente rio acima, sob o olho discreto e frio de John Bull, abafou quase que por completo o ritmo do remar cadenciado do único transporte de outrora.
Por: RubensCoutinho