Escola de luta de José Aldo foi criada para atender 200 jovens, mas a cota já está ultrapassada há tempos. Com pouco mais de um ano de projeto, já são 534 inscritos, dos 6 aos 22 anos, com aulas nos mais variados horários. São meninos e meninas que deixam de lado o cotidiano duro do Complexo da Maré por instantes para evoluírem no judô, jiu-jítsu, boxe e luta olímpica.
O projeto tenta unir duas pontas soltas na História brasileira: a do ídolo internacional que coleciona milhões de dólares e de fãs e de uma das áreas mais carentes na cidade-sede dos Jogos Olímpicos. Na Maré, considerando os dados de 2010 que fatalmente já foram ultrapassados, são 129,7 mil habitantes e 43 mil domicílios. O seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é o 123º colocado do Rio de Janeiro, melhor apenas do que o de Acari, do Parque Colúmbia, de Costa Barros e do Complexo do Alemão.
Por tudo isso é bem fácil imaginar que o tráfico de drogas reina por ali. Mesmo com a presença de tropas militares por lá, os tiroteios entre traficantes são comuns. Mas é perante esse clima de guerra que floresceu Marcelo Negrão, professor de jiu-jítsu para crianças.
A intenção de Negrão é bastante direta, ainda que capaz de cortar o ar com tanta força na fala: “Aqui, nós trocamos um fuzil por um kimono.
Talento da criançada, sobra. Falta – sempre – a contrapartida.
Não é uma fala isolada. Absolutamente todos os entrevistados pelo HuffPost Brasil – alunos, professores ou moradores – dizem isso espontaneamente. “Falta apoio, educação, saúde. Só tem uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) aqui. As crianças não têm nada. Se sair daqui do Aldo, não tem lazer. Vivem dentro desse mundinho. Muitos aqui vivem, nascem, crescem, morrem e nem conhecem outra comunidade. Procuro levá-los para outros lugares. Então vamos ao museu, ao circo”, conta Negrão.
Mas se tem uma coisa que a Maré ensina para os jovens é acreditar no próprio potencial. Com o tráfico no comando, no lugar do Estado, muitos desses adolescentes não têm nem família… Não sobra muita coisa além da força de vontade.
Carolina de Souza Neves, 22, moradora da Maré desde que nasceu, tem sete irmãos e já é mãe. Quer continuar o inglês, a informática e aprimorar o trabalho com cortes de cabelo. Oficialmente, a idade para frequentar o jiu-jítsu já passou para ela. Mas “o pai” Marcelo finge não saber. “A luta foi amor à primeira finalização (risos). Eu era o saco de pancada de todo mundo. Achava que era só agarrar. Mas é um xadrez de corpo. É saber impor sua força.”
O esporte provocou mudanças internas ainda mais profundas que as físicas para Carol: “É um conjunto de coisas. O jiu-jítsu me traz paz. É uma família que me trouxe muitos aprendizados. Antes, minha vida era meio conturbada. Antes, era só falar que eu já queria bater… Era pai, era mãe, era amigo. Não importava. Agora, você conta até três, respira e vai”.
A agressividade, acredita Carolina, tem a ver com conviver tão de perto com cenas inimagináveis para muita gente. “O pior que tem é o tráfico. É ver a exposição das crianças. Ver que um cara com o fuzil embaixo do braço chama a atenção das mulheres”, reforça Carol.
Numa das paredes da academia José Aldo, é visível a frase bíblica “Oh! Provai e verás que o Senhor é bom”. O entra e sai é constante, sem controle de entrada. Aparecem pais, avós, irmãos, alunos fora de horário de aula e quem mais precisar. A ideia reinante é da camaradagem.
Membro da Associação de Moradores do Conjunto Esperança, Celso Luís dos Santos chama a atenção para si. Corpanzil enorme, voz grossa, tom de fala provocador e quase sempre zombeteiro. Ele diz que “fez acontecer” o projeto por seus contatos e por sua influência entre os vizinhos. “Pegaram confiança. E aí montaram a academia popular”, relata, sobre as novas conquistas da escola. A academia conta com os aparelhos de musculação instalados ao lado da quadra poliesportiva e serve como sala de aula das artes marciais.
Celso diz não conhecer desistentes do projeto: “Os pais vêm dar presente. Se me der caixa de bombom, tudo bem. Mas se vem um tênis… Aí já não posso aceitar”. E o José Aldo? Comparece na Maré mesmo? Afinal, ser um dos lutadores mais importantes do UFC nunca é tão simples assim. Sobra tempo para ele estar aqui na Maré? “Tá direto aqui. Não faz igual vocês [imprensa], não. Não pede para buscar na avenida Brasil. Ele vai entrando [na favela]”.
“Antes, era só falar que eu já queria bater… Era pai, era mãe, era amigo. Não importava. Agora, você conta até três, respira e vai”
Os elogios se estendem a Dedé Pederneiras, treinador de Aldo e homem-forte da Nova União, um dos maiores centros de lutadores de MMA do planeta. “O Dedé é sujeito homem. Mandou 300 roupas, viu o que a criançada precisa. Olha aí, os nossos professores são os melhores. Tudo gente que o pessoal todo pagaria muito para treinar com eles.” De fato. Entre os professores só há gente para lá de qualificada, com histórico olímpico, inclusive.
O aluno Felipe Rodrigues Silva, 22, é um dos que fazem um périplo cotidiano entre o conto das duas cidades cariocas – a elite da zona sul e a zona norte, que muitos tentam e fazem de tudo para esquecer e isolar. Durante o dia, trabalha como auxiliar-administrativo da Coca-Cola, em Botafogo, mas volta para casa na Maré ao final do expediente.
O que o fez escapar do domínio do tráfico? “Pensamento positivo. Você pode fazer uma faculdade, conseguir um emprego bom, pensar em algo que você goste de fazer. Ou até ser um atleta olímpico. É treinar, acordar cedo, estudar. Com dificuldade, mas a gente chega lá.”
E não é só: “O Aldo é meu ídolo. Faço MMA, também comecei muay thai por causa dele. Queria agradecer por confiar no nosso mestre e dar a vida por essas crianças”, fala, emocionado.
Para o professor Marcelo Negrão, a Maré certamente renderá ao Brasil um ídolo nos esportes dentro de algum tempo. “Já dá para mapear os que têm talento. Algumas crianças são bastante desenvolvidas. Dá para sentir um futuro campeão. Eles precisam testar a adrenalina de uma competição”, pondera.
Uma das apostas pessoais de Negrão é o maranhense Romário da Silva Costa, 22, que mora no Rio há cinco anos. Ele deixou a casa dos pais no Nordeste após entreveiros familiares e está empilhando os tijolos da própria história na capital fluminense. Para pagar as contas, trabalha na construção civil e foi um dos braços fortes a reerguer o Maracanã para a Copa do Mundo de 2014, coisa que o enche de orgulho.
Para participar das aulas, haja coragem. São até 12 horas diárias de trabalho, seis dias por semana. “Desabafar num saco de areia não resolve nada. Quando você chega para treinar, você precisa estar a fim. No começo, treinava para descarregar a raiva. Eu mudei. Tenho um leque de opções, e o esporte é minha melhor”, revela Romário.
“Você pode fazer uma faculdade, conseguir um emprego bom, pensar em algo que você goste de fazer. Ou até ser um atleta olímpico. É treinar, acordar cedo, estudar. Com dificuldade, mas a gente chega lá.”
O paulistano Rodrigo Pedro da Silva, 29, é o responsável por ensinar o boxe, a nobre arte, aos meninos da Maré. O resultado vai bem, obrigado: João Victor, 14 anos, três lutas, com duas vitórias e um empate, e o Alisson, 7 anos, com duas vitórias em duas lutas. São os nomes do esporte a serem explorados na Maré. A meta, conta o professor, é levá-los para a mesma academia de Aldo e colocá-los para disputar competições como a Luva de Ouro.
Dos 200 alunos do boxe, cerca de 40 são meninas. “As meninas precisam soltar mais o jogo e os homens segurar um pouquinho. E só.”
Rodrigo, talvez por influência do próprio boxe, que vive e ensina todos os dias, é mais direto; ele leva os alunos para fora da comunidade. É preciso deixar claro desde cedo para os jovens que a guerra do tráfico aliena e toma vidas. “Eu levo os meninos daqui da Maré para fazer um ‘aulão’ lá no Borel. É pra mostrar que essa guerra não é deles.”
Sem a menor tendência para contemporizar, Rodrigo joga as cartas à mesa. “O ser humano, tanto na classe média, alta ou baixa, se for para ele ser ruim, ele vai ser. Tem muita gente que tem dinheiro e é ruim. Vejo gente aí que não tem nada, mas tem o coração forte para caramba. Tem de investir no ser humano. Se ficar só nessa de ‘Maré excluída’, ‘Alemão excluído’, ‘Caju excluído’… Tem de abraçar todo mundo. Se não mudar, isso aqui vai ficar um caos ainda maior do que já está.
Fonte: BrasilPost