O município de Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia, tem apenas dois distritos: Iata e Surpresa. O primeiro está a 27 quilômetros da cidade e é bastante conhecido. Surpresa está distante a 200 quilômetros, na margem direita do rio Mamoré, onde só se chega por barco ou avião.
O isolamento faz com que sejam poucas as informações sobre o cotidiano dos quase 1.200 moradores. Uma pesquisa do professor Marcos Antônio Zaramella põe luz na origem do distrito e dos pioneiros, que se sabe agora vieram do nordeste brasileiro e da Bolívia.
“Do Iata é possível encontrar publicações e informações nas páginas da internet. De Surpresa não há nada”, disse Zaramella, que nasceu em Guajará-Mirim e chegou ao distrito em 2004. Inconformado com esta realidade, ele mobilizou colegas professores e alunos dos ensinos fundamental e médio para ouvir remanescentes das famílias dos pioneiros.
As entrevistas revelaram que Surpresa se originou da determinação do pernambucano Tancredo Farias de Matos, que ia de Guajará a Costa Marques no seu batelão, comprando, vendendo ou trocando mercadorias com ribeirinhos. A Guerra do Chaco, que a Bolívia travou com o Paraguai de 1932 a 1935, contribuiu para os sobrenomes em castelhano se perpetuassem entre os moradores da localidade.
Surpresa está numa região onde a fauna e flora são ricas e diversificadas. E o povo valoriza sua beleza. Ao distrito só é possível chegar por via fluvial ou aérea.
A enchente histórica de 2014 provocou estragos que voltam sempre à memória dos habitantes. O prédio da Escola São Judas Tadeu ficava na parte baixa, próximo ao porto, ainda existem as marcas deixadas pelas águas. As instalações foram condenadas, e outra edificação teve que ser feita para atender aos alunos.
O isolamento faz com que a vida transcorra mansamente e a longevidade dos moradores se torne comum. Rosa Cortez, viúva de Tancredo, por exemplo, morreu aos 104 anos.
A falta de estrutura decorre da frágil presença da administração municipal. As ruas estão quase todas tomadas pela vegetação rasteira, não há rede de esgoto e até o transporte é precário. São poucos os carros e as motocicletas predominam, o que se justifica pelo relevo marcado por serras.
FARTURA
Na terra em que os visitantes são acolhidos com demonstrações efusivas de afeto, há grande fartura de peixes e carne. O plantio de macaxeira nos terrenos é quase uma regra.
“Quando uma pescaria é bem sucedida, o pescador separa sua parte e divide com os vizinhos”, conta Fábio Mendes de Souza, professor na Escola São Judas Tadeu, que ganhou um prédio novinho em fevereiro passado.
A mistura étnica é outra característica de Surpresa, Maria Cruz Alves Guassace, diretora da escola São Judas Tadeu, destaca que a instituição recebe filhos dos agricultores, ribeirinhos, dos indígenas e dos bolivianos, além dos peruanos, como ela. “Nossa sociedade é formada por pessoas de várias origens”, diz a mestra, que deixou Surpresa e foi para Mato Grosso do Sul para concluir os estudos.
Recentemente, quando o governador Confúcio Moura inaugurou o novo prédio da Escola São Judas Tadeu, grata pela obra, a professora disse que tem, com os demais professores, a importante missão de levar educação à comunidade que sofre com a distância de centros mais avançados, mas se mantém firme na região.
Se o contingente de descendentes de bolivianos e peruanos é grande no distrito, não é menor o dos filhos de nordestinos. E nordestinos e bolivianos são personagens principais do povoamento que se transformou em distrito em 1998.
A pesquisa que o professor Marcos Zaramella empreendeu em 2015 com colegas professores e estudantes centrou-se nas famílias cujos membros viveram ou ouviram testemunhos de seus ascendentes.
“Temos uma história bonita, centenária, feita por verdadeiros guerreiros”, atesta o professor, que por dois anos seguidos teve o projeto classificado entre os 50 melhores do País no Prêmio Professor Nota 10, onde concorria com cerca de dez mil colegas.
O que emergiu da pesquisa foram relatos que demonstram a resistência dos que se aventuraram numa porção da floresta amazônica com seus mistérios e muita fartura.
Constatou-se nas entrevistas que o primeiro habitante conhecido do lugar foi Severino Alves Rodrigues, na década de 20. Ele se estabeleceu na região com a família e ficou até ocorrer uma tragédia com a filha de 12 anos.
A menina caiu num poço de aproximadamente 15 metros de profundidade e morreu pouco depois. Abalado, Severino foi embora e dele não se teve mais informações.
Após o hiato de alguns anos, a ocupação da localidade recomeça, desta vez em 1930, com o pernambucano Tancredo Farias de Mato. Ele veio para instalar-se em Guajará Mirim com a intenção de fazer comércio nas comunidades ribeirinhas.
Tancredo comprou uma embarcação, que enchia de mantimentos e seguia pelos rios Mamoré e Guaporé até Costa Marques, vendendo ou trocando produtos. No escambo, incluía peixe seco e castanhas.
O pernambucano observou, nas viagens, que nas proximidades do encontro dos rios Guaporé e Mamoré havia terras cujo relevo era favorável ao plantio de alimentos por não alagar. Certa vez aportou e foi conhecer a parte mais próxima, tendo concluído que servia para moradia. Depois, construiu uma casa para servir de base nas viagens.
Algum tempo depois casou com Rosa Cortez, de uma família de Costa Marques, e passou a viajar com ela até que, cansado, decidiu fincar moradia de vez no local onde mantinha base. No local plantou cana e mandioca.
GUERRA
A eclosão da Guerra do Chaco levou à localidade um contingente que fugia do conflito. A Bolívia uniu-se em defesa da região do Chaco Boreal, que estava sendo invadido pelo Paraguai. A guerra iniciou em 1932 e encerrou em 1935. Apesar do Exército mais volumoso, a Bolívia foi vencida.
O latifundiário Carlos Carafa, italiano, mantinha cerca de 20 famílias sob sua responsabilidade em terras bolivianas e temia que fossem chamadas para participar da guerra. Até conseguiu uma faixa de terras, mas temendo que a força militar o obrigasse a ceder pessoal, cruzou o rio e pediu abrigo para Tancredo e seu pessoal.
Os dois firmaram uma sociedade. As famílias trabalhariam para ambos e os lucros seriam divididos. Para as famílias bolivianas era um bom negócio.
Afinal, escapavam da guerra e da escravidão, que ainda era vigente em seu país, e ainda tinham terras para cultivar, além do tratamento diferenciado.
Ao final da guerra, Carlos Carafa chamou seu grupo para retornar à Bolívia, mas só duas famílias o seguiram. O restante ficou com Tancredo, trabalhando nas lavouras e prestando contas a ele.
“QUE SURPRESA!”
Dono de terras e com trabalhadores potencializando a produção, Tancredo mandou um grupo explorar mais a região. “Os homens passaram 15 dias na floresta e retornaram informando que acharam grandes castanhais, rios e riachos abarrotados de peixes, caça em abundância, borracha, poalha, madeira, etc”, revela a pesquisa de Marcos Zaramella.
Um dos entrevistados na pesquisa diz que, diante de notícia tão extraordinária, Tancredo teria dito: “que surpresa!” Daí então, surgiu o nome da localidade.
O contingente foi acrescido, mais tarde, com pernambucanos, cearenses, amazonenses e outros, que queriam terras para plantar.
Tancredo morreu em 1953, asfixiado pela fumaça em um incêndio. Ele mantinha alambique e produzia cachaça. O sinistro ocorreu quando queimava cera para impermeabilizar as tampas das garrafas.
A regularização das terras, que ficaram com os trabalhadores da propriedade, ocorreu após alguns embates burocráticos. No início dos anos 80, o então governador Jerônimo Santana criou a Comissão Executiva dos Vales dos Rios Mamoré, Guaporé e Madeira (Cemaguam) para delinear a presença do estado na região.
Atualmente, Surpresa abastece Guajará-Mirim com peixe, bananas, farinha de mandioca e mantém em ascensão a produção de café, milho, arroz e feijão.
A novidade é a pecuária que se desenvolve com a chegada de fazendeiros de Seringueiras, São Francisco, São Miguel e Costa Marques em razão do preço e qualidade das terras. Costa Marques, no rio Guaporé, é o destino final da produção.
Surpresa mantém nas tradições e gastronomia forte marca dos vizinhos bolivianos. O massaco (carne seca com bananas maduras, verdes, fritas e socadas no pilão com tempero verde), a chicha (bebida feita com uma espécie de milho conhecido como mole, torrado, moído depois cozido e coado), o locro (de sopa feita com frango) e cunhapé (pão feito com a goma da mandioca recheado com queijo), por exemplo, fazem parte da alimentação dos moradores.
Fonte: ecom – Governo de Rondônia