‘Tráfico evangelizado’ é acusado de liderar ataques a terreiros no Rio

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O babalorixá Márcio de Barú em seu terreiro, na Penha (zona norte do Rio), vítima de intolerância

O babalorixá Márcio de Barú em seu terreiro, na Penha (zona norte do Rio), vítima de intolerância

“Olha aqui, meus amigos, o capeta-chefe tá aqui. Taca fogo em tudo, quebra tudo! Apaga as velas, porque o sangue de Jesus tem poder!”

Naquela tarde de setembro, quem tinha poder sobre a mãe de santo Carmen de Oxum, 66, não era Jesus, mas traficantes que dizem tê-lo no coração. O grupo de Nova Iguaçu (Baixada Fluminense) teria se convertido evangélico e passado a perseguir religiões afro-brasileiras em sua área de influência. Como deixar claro que Carmen não era bem-vinda ali?

Forçando-a “quebrar tudo” em seu terreiro –cena capturada em celular e distribuída nas redes sociais pelos próprios agressores. A casa dela foi uma das oito atacadas na região de agosto para cá, em crimes associados ao tráfico evangelizado. Ao menos no caso de Carmen esse elo foi comprovado, afirma à Folha o diretor-geral da Polícia da Baixada, Sérgio Caldas.

A Polícia Civil identificou parte dos supostos autores dos atentados, em investigação que corre em sigilo. Os nomes foram associados ao tráfico, e acredita-se que alguns tenham se convertido na prisão.

A vítima é ialorixá (sacerdotisa) no candomblé e Carmen Flores no RG. Os invasores preferiam outras definições, conta a mãe de santo à reportagem: “Bruxa, macumbeira e feiticeira-mor que alimenta Satanás”.

“O ataque foi uma coisa de surpresa”, diz Carmen. “Cheguei em casa do mercado, deixei a bolsa na mesa e fui pagar o Uber. Aí eles entraram, sete homens armados [com pistolas e barras de ferro]. Falaram que receberam ordens para atacar os terreiros da área.”

No vídeo divulgado na internet, ela é instruída a espatifar objetos ligados à sua fé, como imagens de orixás, os deuses para umbanda e candomblé –uma delas é Iansã, análoga à Santa Bárbara dos católicos no sincretismo religioso do Brasil. Na saída foi deixado um “suvenir”, diz Carmen: “Escreveram ‘Jesus’ na calçada fresca de cimento”.

INQUISIÇÃO

As marcas da intolerância religiosa às vezes são deixadas na carne. Também em Nova Iguaçu, uma umbandista foi apedrejada em agosto pela vizinha evangélica. Maria da Conceição da Silva, 65, levou pontos na teste e na boca.

Poderia ter sido pior, diz o secretário fluminense de Direitos Humanos, Átila Nunes. “Peguei a pedra na mão, uma pedra arrancada da calçada, devia ter uns dois quilos. A Maria não conseguia abrir o olho, o corte foi de ponta a ponta. Podia ter matado”, afirma ele, filho de um político e radialista ligado à umbanda.

A agressora já havia feito um frustrado abaixo-assinado para expulsar da vizinhança aquela que acusava de “bruxaria”, segundo Nunes. Casos como esse e o da mãe Carmen, afirma, o fazem concluir que “estamos voltando para a época da inquisição”.

Em agosto, a secretaria lançou o Disque Combate ao Preconceito. Dez das 41 ligações recebidas no primeiro mês reclamavam de intolerância religiosa. Já o Disque 100, canal da Secrataria de Direitos Humanos da Presidência para denúncias de violação dos direitos humanos, registrou 15 casos afins em 2011 e 756 no ano passado.

O aumento de 4.940% se explica em parte pela maior difusão do mecanismo. Nunes, contudo, ainda crê estar diante de crimes subnotificados.

Credos afro-brasileiros são os alvos preferenciais, apontam os dois disques. Para o secretário, a evangelização pró-ativa pode dar margem ao preconceito. “Você não vê ninguém em praça pública dizendo que só os orixás salvam.”

Ele prefere não falar em ataques cometidos por “evangélicos”, e sim “fanáticos religiosos”. “O verdadeiro cristão não tem esse tipo de atitude.”

O babalorixá Márcio de Barú, 37, chama seus detratores de “falsos evangélicos” –rótulo sugerido por um vizinho amigo “que, veja só, é evangélico”. Segundo Márcio, moradores de um prédio próximo atiram batata-doce, pedra portuguesa e ovos que deformam o telhado e sujam o chão do quintal onde realiza sessões de candomblé, na Penha, bairro carioca que faz fronteira com o Complexo do Alemão.

Achou que o primeiro arremesso, há dois anos, fosse travessura de criança. Mas a hostilidade continuou, diz o ex-coroinha que já frequentou a Igreja Universal. Menções a Jesus são comuns quando o atacam, diz o hoje motorista de lotação e pai de santo, lembrando que sua fé também reverencia o líder do cristianismo. “Se saio paramentado, o que mais escuto é ‘chuta que é macumba’, ‘Jesus te ama’.”

Quando seu pai teve um tumor cerebral, oito anos atrás, foi fazer um “ebó” (oferenda a orixás que pode envolver comes, bebes como pinga e sacrifício animal) numa cachoeira. “Milicianos chegaram com arma na cabeça e disseram para sair que lá era área de evangélico. Catamos tudo correndo: canjica, velas…”, conta.

O pai se recuperou. Já a confiança de Márcio em “crentes” anda debilitada. Para ele, a escalada de ofensas foi alavancada pela eleição do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, bispo licenciado da Universal e sobrinho de Edir Macedo –que nos anos 1980 publicou o best-seller “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?”.

O próprio Crivella, no livro “Evangelizando a África” (1999), diz que igrejas de matrizes africanas abrigam “espíritos imundos” e praticam o sacrifício de crianças (ele já pediu perdão pela escrita).

A animosidade mútua se acirra. No Facebook, Márcio afirmou que no próximo ataque “não vai ser bonzinho” e fará um “ebó” contra o agressor (“foi no calor do momento”, contemporizou). Também na rede social curtiu um post “a favor da cura evangélica” (trocadilho com a “cura gay ).

Diz ter sob seus cuidados “dois pastores”, inclusive um cuja esposa o trocou por outro fiel e “graças a mim está com a família de novo”.

O ex-traficante que virou pastor Demetrio Martins, no Rio de Janeiro

O ex-traficante que virou pastor Demetrio Martins, no Rio de Janeiro

UMA COISA OU OUTRA

Para Silmar Coelho, presidente do Conselho de Pastores do Rio de Janeiro, é preciso “separar o joio do trigo”, pois “se é evangélico, não pode ser traficante, e vice-versa”.

“Ou uma coisa ou outra”, concorda o pastor Demetrio Martins, 48. E ele conhece de perto o mundo do crime.

Nos anos 1990, o então braço direito do traficante Orlando Jogador (1959-1994) chegou a número 2 na hierarquia do Comando Vermelho no Complexo do Alemão, com 25 bocas de fumo sob sua guarda.

Orlando e ele eram devotos de Malandro, “que fechava nosso corpo”, e construíram no alto do morro do Alemão um altar para Zé Pilintra e pombas-giras -todos entidades cultuadas na umbanda.

Nenhuma delas o protegeu quando, 24 anos atrás, policiais o alvejaram “com uma rajada de metralhadora” e o arrastaram por 200 metros, diz.

Era um plano de Deus, hoje acredita. Semanas antes da tocaia que o deixou paraplégico, cruzou na favela com “um homem de Deus que profetizou: “O Senhor tem uma grande obra para ti. Mas, se você continuar neste caminho, vai pregar numa cadeira de rodas”. Demetrio estava com 20 colegas, mas o recado foi endereçado apenas a ele, conta.

Ao se converter, já cadeirante, entendeu que o melhor era seguir a máxima do apóstolo João: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Por compreenderem que Jesus é a única verdade possível, evangélicos não reconhecem santos (como os católicos) e muito menos guias de umbanda e candomblé, “esses seres demoníacos”.

Discurso similar tem do pastor Coelho: “Tenho amigos macumbeiros. Temos que amar como Jesus amou quando ainda estávamos perdidos. A gente é contra o erro, não a pessoa”.

Martins vê como exemplo da falta de “virtude” mães e pais de santos que prometem trazer a pessoa amada em três dias. “Nosso Deus não destrói uma família para construir outra. Para ter a pessoa amada para si, você se interessa em saber se ela já pertence a alguém?”

Hoje as igrejas são “bem vistas” por traficantes e isso é bom, mas “os verdadeiros evangélicos” jamais permaneceriam na criminalidade, diz.

E, se depredam terreiros, são “meia dúzia que tentam manchar o Evangelho”. “É o sujo falando do mal lavado. Como mandar quebrar centro espírita em nome de Jesus?”

Para Sérgio Caldas, da Polícia da Baixada, a aproximação entre tráfico e evangélicos se fortaleceu nas prisões. Nelas, “o número [de missões evangelizadoras] é muito alto. E o preso procura uma corda para se segurar, acaba simpatizando com a vertente religiosa.”

Babalorixá e delegado da secretaria federal de Direitos Humanos, Diego Montone adere à fórmula “siga o dinheiro”. Traficantes veem nas igrejas “a questão da salvação, o ‘você matou e agora está salvo de seus pecados’, mas não só”, afirma. Muitas igrejas serviriam também como “lavanderia” de dinheiro sujo.

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